Enquanto houver desigualdade social e falta de sensibilidade na escuta das necessidades dos povos originários e das populações marginalizadas, haverá crise ambiental. A afirmação foi feita pelo pesquisador no Instituto de Desenvolvimento Mamirauá, organização social vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Vinicius Zanatto. Ele participou da mesa redonda Justiça Climática nos Territórios Amazônicos, na segunda-feira (17), na Casa da Ciência, durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP30).
Também presente, a secretária de Políticas e Programas Estratégicos (Seppe), do MCTI, Andrea Latgé, falou da dimensão política e nacional da crise climática, defendendo que a pauta amazônica precisa romper fronteiras internas e ocupar o centro das decisões do País. “A gente precisa levar essa pauta para a região Sudeste, para a região Sul, para se consolidar. A gente tem que mostrar este país da Amazônia lá para baixo”, afirmou.
Latgé fez um apelo para que pesquisadores assumam maior protagonismo na formulação de políticas públicas. “Não é só aqui ou agora, não é só publicar. A gente tem que criar condições para ter um país melhor, mais justo, com equidade. Depende da gente”, disse. Para ela, a COP30 é o momento de transformar conhecimento acumulado na Amazônia em diretrizes nacionais: “Vamos trazer essa mensagem para todo o País”.
Moderado pelo subsecretário da Amazônia, Dorival da Costa dos Santos, foi proposto aos participantes um diálogo sobre respostas a desastres, focado no impacto que as mudanças climáticas geram em populações tradicionais e vulneráveis. Os cientistas fizeram alertas sérios: segundo a UN CC:Learn, embora representem apenas 5% da população mundial, os povos originários constituem 15% da população global em situação de pobreza, o que os coloca em maior risco diante de eventos extremos.
O Painel Intergovernamental sobre Mudança de Clima confirma que comunidades indígenas — especialmente na Amazônia e no Ártico — sofrem impactos desproporcionais em seus meios de vida, já que dependem diretamente de ecossistemas afetados por secas, incêndios, enchentes e degradação ambiental.
Desigualdades de gênero também foram abordadas pelos pesquisadores. Segundo dados do relatório O Progresso nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: O Panorama de Gênero 2024, produzido pelo Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (ONU) e pela ONU Mulheres, as mudanças climáticas podem empurrar ao menos 158 milhões de mulheres para a pobreza. A quantidade é 16 milhões a mais do que a projeção para homens.
Para cada aumento de 1 °C na temperatura global, casos de violência por parceiro íntimo crescem 4,7%, podendo afetar 40 milhões adicionais de mulheres anualmente, em um cenário de aquecimento de 2 °C. O relatório Colliding Crises, produzido pela ONU, explica a problemática: as mudanças climáticas funcionam como um “multiplicador de desigualdades” que empurra mulheres para ciclos mais profundos de vulnerabilidade econômica e social, porque afetam justamente os fatores que sustentam autonomia, renda e segurança.
Para João Valsecchi, pesquisador no Instituto Mamirauá, em alguns anos a Amazônia já produzirá refugiados climáticos — populações obrigadas a deixar seus territórios devido a impactos ambientais extremos. O cientista citou como exemplo a cidade de Anamã (AM) que, em 2025, ficou em estado de emergência devido a enchentes. Segundo a Defesa Civil, cerca de 70% do território do município ficou alagado, afetando cerca de 1,7 mil famílias. “Ou seja, alguma coisa vai ter que acontecer nesse território se os eventos climáticos continuarem nesse extremo”, afirmou.
Para Valsecchi, é necessário dar atenção ainda ao fator da idade. Crianças nascidas nos anos atuais já enfrentam um cenário de calor extremos e eventos climáticos adversos. “Quem nasceu em 1950 está começando a sentir os efeitos do aquecimento, quem chegou em 2023 já enfrenta esse cenário. Quem está nascendo hoje, qual cenário vai encontrar com 70 anos de idade? A questão etária é muito séria no enfrentamento de mudanças climáticas.”
Eventos extremos e infraestrutura
De acordo com o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Laercio Namikawa, em eventos extremos, como nas enchentes no Rio Grande do Sul (RS), ocorridas em 2024, as populações vulneráveis já são as mais afetadas. Segundo ele, de 10.882.965 habitantes do RS, 2.398.355 foram afetados, 581.636 desalojados e 81.200 em abrigos. Ao todo, 12,7 bilhões de metros cúbicos de chuva caíram na região.
“Grande parte da população afetada, obviamente, é aquela que não tem condições de morar em áreas um pouco melhores, acaba ficando em regiões que estão em áreas de risco, sem infraestrutura que permita enfrentar essas situações. No Inpe conseguimos calcular, por exemplo, o valor da quantidade de água que caiu nessas bacias. É basicamente um terço de Itaipu. O resultado disso é o desastre que vimos”, afirmou.
Justiça climática e saberes indígenas
A antropóloga do Museu Paraense Emílio Goeldi Cláudia López-Garcés trouxe o entrelaçamento entre justiça climática e saberes indígenas. Ela lembrou que não há justiça climática sem o reconhecimento das desigualdades históricas, das responsabilidades diferenciadas e da proteção dos direitos fundamentais dos grupos mais vulneráveis: “As ações climáticas não podem violar direitos fundamentais, como acesso a água, alimentação, moradia e, principalmente na agenda dos povos indígenas, o acesso ao território.”
Cláudia ressaltou por que os impactos climáticos são mais severos nesses povos: “Eles enfrentam riscos maiores devido à dependência de recursos bioculturais e à vulnerabilidade socioeconômica.” Ela apresentou o conceito de sistemas de conhecimento da Rede BioAmazônia, destacando que práticas ancestrais atravessam dimensões agrícolas, medicinais e espirituais: “Os conhecimentos indígenas estão profundamente ligados ao território e aos ecossistemas locais por meio de experiências, habilidades e inovações expressadas de forma oral, escrita, visual, prática e científica.”
A pesquisadora enfatizou que esses conhecimentos são essenciais para conservação da floresta e manutenção do equilíbrio ambiental: “Onde existem populações indígenas, existe maior biodiversidade; há uma relação direta entre diversidade biológica e diversidade sociocultural.”
Para os participantes, enfrentar eventos extremos na Amazônia exige integrar ciência climática — que monitora rios, solos, atmosfera e extremos — com saberes ancestrais de povos indígenas e tradicionais. É dessa articulação que surgem resiliência territorial, capacidade de resposta e planejamento adaptativo.
Cláudia defendeu mudanças estruturais. “É necessário estabelecer diálogos interculturais mais assíduos, promover interação respeitosa entre conhecimentos indígenas e científicos e incentivar a construção conjunta de conhecimentos”, disse. Por fim, discutiram a criação da Universidade Federal Indígena.
Namikawa destacou que parte das soluções depende de infraestrutura robusta, como satélites nacionais, modelagem integrada oceano-atmosfera e supercomputação capaz de gerar previsões de sete dias, já demonstradas pelo modelo Monan, mas ainda limitadas por falta de capacidade computacional.
A convergência das falas deixou uma mensagem clara: a Amazônia já vive o futuro climático que o mundo teme, e a resposta exige combinar ciência, governança e protagonismo dos povos que mantêm a floresta viva. As soluções apontam para o mesmo eixo: fortalecer a adaptação imediata, diversificar economias vulneráveis, garantir infraestrutura e políticas baseadas em dados e, sobretudo, enfrentar as causas da crise — emissões, perda florestal e desigualdade. A região tem conhecimento, instituições e comunidades que sabem o que funciona. O desafio agora é transformar diagnóstico em ação antes que a crise ultrapasse o ponto de retorno.
Casa da Ciência
A Casa da Ciência do MCTI, no Museu Paraense Emílio Goeldi, é um espaço de divulgação científica, com foco em soluções climáticas e sustentabilidade, além de ser um ponto de encontro de pesquisadores, gestores públicos, estudantes e sociedade. Até o dia 21, ela será a sede simbólica do ministério e terá exposições, rodas de conversa, oficinas, lançamentos e atividades interativas voltadas ao público geral. Veja a programação completa.






